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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A museologia do conflito

Ainda sem política pública específica, os museus comunitários se multiplicam engajados política e socialmente.

Ter a sua sobrevivência, de alguma forma, ameaçada é uma premissa comum e talvez o ponto chave para que comunidades - da praia, das periferias urbanas ou do sertão - mobilizem esforços para a criação dos chamados museus sociais. João Paulo Vieira, historiador, integrante da Rede Cearense de Museus Comunitários e um dos idealizadores do projeto Historiando (que desde 2002 trabalha memória junto a comunidades em conflito), explica que a natureza de construção coletiva da memória, proposta pela corrente, mais do que o produto desta construção, funciona como uma arma de autoafirmação e articulação destas comunidades.

"São experiências que utilizam a memória e a história como ferramentas dessa articulação comunitária. São espaços onde as próprias populações refletem criticamente sobre os seus processos históricos e constroem uma narrativa em primeira pessoa", define. O ambiente conturbado em que algumas comunidades tradicionais se encontram - em disputas pela terra com empreiteiras ou ameaçadas pela especulação imobiliária, no caso de pescadores e índios, ou pela a marginalização e falta de assistência pública, no caso das periferias - fazem com que o resgate desta história, mais do que uma vontade de conservar a memória daquele território, seja encarado como uma forma de resistência. "O público também passa a ter uma outra conotação. Não é apenas os visitantes de fora que vem ver o museu. O público principal é a própria comunidade local. O museu vira um centro de educação diferenciada, onde através da cultura material saber um pouco mais sobre a historicidade desses grupos", explica o historiador.

Debate
Relativamente nova dentro da museologia, a corrente ainda encontra certa resistência por parte da academia e de alguns estudiosos no assunto. Segundo João Paulo, no Ceará, ainda há uma luta de afirmação da nova proposta de museologia. Questiona-se os museus comunitários, por exemplo, por não possuírem reserva técnica, iluminação adequada ou ter o acervo construído pelas próprias populações não especializadas.

Entre os questionamentos, estão ainda o reconhecimento do território como algo a ser musealizável e, por isso mesmo, de não se ter necessariamente um prédio sediando o acervo por completo. "O que eles questionam é a apropriação por comunidades tradicionais de uma invenção do colonizador - no caso, o museu - e a sua utilização a serviço do desenvolvimento local e da afirmação de outras memórias e outras histórias que foram silenciadas ao longo do tempo", argumenta.

Experiencia
O início do estudo da museologia social remete às décadas de 1960 e 1970, tendo como marco a Mesa Redonda de Santiago do Chile de 1972, onde foram demarcadas as diretrizes da nova proposta. No Ceará, uma das primeiras experiências práticas nesse viés, segundo o historiador, foi registrada na década de 1990, entre os índios Kanindé de Aratuba. "Em 1994, o Cacique Sotero percebe o poder dos objetos e da memória como ferramenta na luta deles e começa a juntar um acervo na sua própria casa e montar, a partir de uma expografia bastante singular, o primeiro museu indígena do Ceará", aponta.
"Ele nunca tinha entrado em um museu", completa, reforçando que a ação do cacique foi algo espontâneo, intuitivo e que enquadrou-se no novo conceito museológico, embora Sotero não tivesse conhecimento específico sobre o assunto.
O Museu Indígena Jenipapo-Kanindé. O guia Preá ressalta a importância da iniciativa para a afirmação da identidade da comunidade fotos: Natinho Rodrigues

Ainda sem uma política pública específica de apoio, as iniciativas começam se a organizar em rede como uma forma de trocar experiências e gerar uma demanda articulada capaz de reverter esse quadro. Felipe Evangelista, antropólogo vinculado à Coordenação de Museologia Social e Educação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), reconhece que, em plano federal, o apoio dado ainda está aquém das desejável e é insuficiente para atender as demandas.

"Este é um tipo de museologia que fez parte do projeto de estudo do Ibram desde o início. É um pouco o programa ´garota dos olhos´, uma certa vitrine. Quando vem gente do exterior, geralmente, é o que mais chama atenção. É o que tem de mais inovador na museologia brasileira", pondera Evangelista, ressaltando o interesse do instituto neste tipo de iniciativa.

O apoio federal aos museus comunitários é concedido através do programa Pontos de Memória, criado com a intenção de apoiar projetos ligados à construção de memória em bairros violentos e aos poucos foi agregando outras iniciativas como os museus indígenas, rede de memória LGBT cultura afro-brasileira, cultura popular.

"Hoje, é um programa bem diverso, mas com esse caráter de contar outras versões, diferentes da memória oficial", revela. O Ceará é o estado com mais iniciativas apoiadas, com 13 projetos contemplados em 2012 e 2013. Radicado no Rio de Janeiro, Evangelista avalia que o Rio Grande do Sul e o Ceará são os estados que mais se destacam, tanto em quantidade de iniciativas quanto em nível de articulação.

Estados como o Rio de Janeiro, Maranhão, Bahia, amplia, também têm experiências bem sucedidas. "São iniciativas autônomas, anteriores ao programa. O programa é apenas uma fonte de apoio para incorporar processos que já existiam. Os protagonistas principais são as comunidades. É uma museologia de caráter comunitário e que nós, como órgão publico, estamos tentando estruturar", diz.